Resolvi
escrever este post sobretudo porque, nos últimos dias, muitos dos meus amigos e familiares me têm questionado sobre os motivos da anunciada greve dos
médicos, a decorrer, nos próximos dias 11 e 12 de Julho e julgo que este assunto merece uma clarificação, ainda que breve. Vou tentar
esclarecer e realçar alguns dos pontos fulcrais desta greve, que têm sido um pouco
obscurecidos pelos meios de comunicação social e pelas próprias entidades
competentes, na pessoa do próprio Ministro da Saúde e seus assessores, que têm
feito um grande esforço para caricaturar a classe médica como uma classe de
privilegiados, prevaricadores e presunçosos (claro que há espécimes desses... como
em todas as profissões!).
Pois bem, já
há meses que as organizações sindicais médicas andavam em negociações com o
Governo em torno dos novos regimes de trabalhos e respetivas grelhas salariais.
Ao longo dos últimos 5 meses, não foram tomadas quaisquer medidas face às
propostas apresentadas pelos sindicatos, sendo o adiamento a solução encontrada
pela delegação governamental. Simultaneamente (daí a falta de transparência de
que o Governo é alvo), foi elaborada uma proposta, pronta para aprovação, que
veio chocar toda a comunidade médica. Esta proposta consistia na abertura de um
concurso público para “colocar em leilão” a contratação de cerca de 2,5 milhões de horas de trabalho médico (equivalente ao horário
completo de 1700 médicos) para as instituições do Serviço Nacional de Saúde (SNS), via
empresas privadas prestadoras de serviços, sendo o critério de adjudicação
adoptado “o preço mais baixo/hora”.
Vejamos quem
sai prejudicado com estas medidas e o que é que está em jogo:
- O MÉDICO que deixa
de ser contratado pelas suas qualificações, experiência, prática clínica,
componente humana, entre outras características fundamentais a um bom
profissional de saúde, mas sim pelo preço mínimo que a empresa que o contrata
paga pelos seus serviços e, naturalmente, pela rapidez com que “despacha os
doentes” (desculpem a expressão, mas é uma realidade). Segundo esta proposta,
os médicos serão obrigados a consultar, no mínimo, 4 utentes por hora (que bem
feitas as contas entre o médico chamar o doente, ele entrar, tirar o casaco,
sentar, voltar a levantar, vestir o casaco e sair pela porta... vejam quanto
tempo sobra realmente para observar o doente... já para não falar no processo
de informatização que é atualmente exigido, em que se regista tudo e mais
alguma coisa, mas cuja lentidão dos equipamentos (computadores velhos,
servidores lentos, software pouco intuitivo...) ainda dão uma ajuda a diminuir
o tempo efectivo de consulta!! Assim, não há espaço para “Medicina de
Qualidade”. Ainda, outro aspecto que esta proposta inclui é o facto das
empresas privadas poderem mudar
sucessivamente os profissionais que colocam numa dada instituição, desde que
comuniquem com a antecedência de 30 dias, não se exigindo a existência de um
quadro próprio de pessoal médico. Ao longo da minha formação em Medicina pré e
pós-graduada foi-me incutido que o sucesso dos cuidados de saúde se baseavam
numa abordagem multi e interdisciplinar de trabalho em equipa. Nesta proposta,
o conceito de trabalho em equipa é completamente desvirtualizado e considerado
secundário, uma vez que os profissionais são contratados individualmente, para
colmatar falhas onde possam existir, inclusivamente, independentemente do seu
grau de diferenciação, pois o crit ério é apenas a produtividade (ver 4 doentes/hora), não sendo feita
referência às habilitações do médico contratado. Assim, e citando o antigo
Ministro da Saúde, Paulo Mendo, a contratação de médicos através de trabalho
temporário é equivalente a “transformar o SNS numa Bandalheira!”. A tudo isto
se adiciona o facto de em vez de contratar pessoal para os quadros (como acontecia
até então), opta-se por colocar os médicos a recibos verdes. Esta instabilidade,
aliada a pagamentos que podem ir até valores “ridículos”, à semelhança do que
acontece já com os enfermeiros (profissionais qualificados a receber 3,96€/hora)
e com a necessidade constante de actualização de conhecimento médico, essencial
para uma prática médica consciente e de qualidade (como todos nós pretendemos),
é impossível não levantar a questão: haverá tempo, dinheiro e disposição para
essa formação? Que médicos vamos ter/ser (no meu caso)? Naturalmente medíocres!
É isso que se pretende?? E quem será o mais afetado… mais uma vez todos nós,
enquanto utentes!
-
O UTENTE, conforme já referido, se a contratualização do médico
não se baseia em critérios de qualidade, o utente passa a ser consultado por
profissionais pouco qualificados e, como todos sabemos, quando toca à Saúde
todos nós queremos sempre os melhores... desenganemo-nos todos porque isso
deixará de acontecer! Ainda, o facto dos profissionais poderem ser substituídos
de acordo com a conveniência da empresa responsável pela sua contratualização,
os utentes podem ver o médico mudar todos os meses/anos. Ora, deixa de existir
acompanhamento longitudinal do doente ao longo do tempo. Isto é particularmente
importante e GRAVE, no âmbito dos Cuidados de Saúde Primários. Eu, como sabem,
estou a tirar a especialidade de Medicina Geral e Familiar, e, como tal, um dos
motivos que me levou a escolher esta especialidade foi a possibilidade de
seguimento dos doentes de várias gerações, ao longo das várias etapas da sua
vida... e agora? O que acontecerá ao médico de família? Aquele em quem se
confia, aquele que está sempre
acessível, aquele que conhece a realidade sócio-económico-cultural e
existencial das famílias que acompanha, que aborda todo o tipo de problemas,
com base no conhecimento e confiança que obtém dos contactos repetidos com “os
seus doentes”. Isso é deveras preocupante.... Deste modo, um pouco por todas as
áreas, os serviços como os conhecemos hoje vão, a seu tempo, desaparecer. A
falta de formação contínua, aliada ao critério “do mais baixo preço” vai tornar
o SNS num serviço de assistência medíocre, onde trabalham, não os melhores, mas
os que fazem mais barato / se sujeitam (sim, porque a necessidade também vai
obrigar muitos profissionais a sujeitar-se às condições miseráveis oferecidas).
Mais uma vez, quem sai prejudicado é o cidadão, és tu e sou eu… somos “nós”, os
10 milhões de Portugueses (tirando uma minoria, nos quais o Sr. Ministro se
deve incluir, que têm possibilidade de recorrer ao privado e, aí sim, irão
escolher as grande referências da área que procuram!!! Mas para ti, povo, chega
bem o Dr. António, que nem sequer tirou a especialidade porque não abriu vaga
para ele no ano em que concorreu... sim, porque as vagas para as especialidades
médicas começam a ser inferiores ao número de candidatos.. mas isso é outro
assunto!)
TODOS NÓS seremos prejudicados!
(Sendo os médicos duplamente prejudicados, enquanto profissionais de saúde e
enquanto cidadãos!)
Sempre ouvi
dizer que a “Saúde é o bem mais preciso que podemos ter”, “sem Saúde, nada
vale”. Pois bem, concordando com estas máximas e considerando que ainda é
possível “salvar o SNS e os seus princípios, garantindo a qualidade dos
serviços prestados”, é que nos próximos 2 dias uma massa considerável de
médicos irá aderir à Greve (abdicando, inclusivamente, de dois dias de ordenado),
com o objetivo último de salvaguardar o bem sem o qual nada subsiste... a
Saúde!
Pelo que vejo... às tantas ainda chegaremos a isto:
PS: Este
post teve por base vários documentos emitidos nos últimos dias pelas entidades
sindicais do médicos (SIM – Sindicato Independente dos Médicos e FNAM –
Federação Nacional dos Médicos), pela Ordem dos Médicos, em artigos de jornais
diários, bem como um texto muito interessante do meu colega Daniel Miranda,
muito claro e conciso acerca desta problemática.
ATENÇÃO: além destes motivos, existem muitos outros, igualmente importantes, que envolvem a carreia médica, a definição do acto médico, etc. que os médicos querem ver salvaguardados e que somam motivos à greve pré-anunciada, mas que saem do interesse do público em geral e, portanto, deste post.
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